
Os fura-filas
Postado por Accioly Catelli - 01/07/2013
Quase cem mil decolagens diárias no mundo, no ano bilhões de pessoas provavelmente honestas viajando a trabalho, de férias, emigrando. Basta alquém sequestrar um avião, explodi-lo ou apenas colocar em risco a vida dos passageiros e tripulação para que a partir de então bilhões de passageiros sejam revistados, passem por detectores de metal e scanners 3D, tenham apreendidos seus frascos de perfumes em bagagens de mão não despachadas. Todos concordam com os procedimentos e se submetem ao ritual pacificamente, pelo bem geral. Mas o que dizer se passarem a ser tratados como terroristas? E se as inspeções levarem 3, 4 horas, por falta de pessoal, equipamentos modernos, de cães farejadores, pelo excesso de burocracia e desorganização, por longas e desnecessárias entrevistas, refeitas quando um funcionário é substituído por outro? E quando a demora de tais revistas fizer com que se perca o voo? Por mais espantoso que seja, a maioria dos usuários agirá cordatamente, ainda que a situação os revolte interiormente, pois há ainda um sentimento de igualdade, isonomia. Pois bem, o que dirão os pobres "terroristas potenciais" quando virem fura-filas resolvendo tudo celeremente, com duas ou três palavrinhas seguidas por apertos de mão, sorrisos e tapinhas nas costas? E às vezes ainda embarcando com líquidos inflamáveis e canivetes?
Essa é uma boa ilustração do que vivemos hoje na construção civil em Brasília. É desejável que haja leis, licenciamento e fiscalização rigorosos, pois entende-se que seu objetivo último seja a qualidade de vida da população, incluindo sutilezas como o respeito à sua memória. Contudo, as leis não são claras, dependem de interpretação e consequentemente permitem que até mesmo empatia influencie no modo como serão aplicadas - duro ou brando -, projetos muitas vezes simples tramitam por vários meses, às vezes anos, pelas administrações regionais, Corpo de Bombeiros, Cindacta, Inspetoria de Saúde, CEB, CAESB e outras concessionárias, SEDHAB, Coordenadoria das Cidades, IPHAN, Detran e em breve por órgãos que ainda não foram criados. Um singelo exemplo do que se enfrenta: Cria-se, após estudos seriíssimos que atravessam governos, um lote destinado a centro comercial com determinado potencial construtivo. Depois que o lote é adquirido em licitação a preços astronômicos, impulsionados em parte pelo próprio órgão do governo que o comercializa, depois que são desenvolvidos todos os projetos, que todas instâncias são ultrapassadas em todos órgãos citados neste parágrafo, onde tudo é minuciosamente examinado, somente então o Detran se manifestará favorável ou desfavoravelmente, se as vias comportam o tráfego que a obra gerará. Um leigo em gestão urbana se escandalizaria, indagando do porque de o próprio governo não ter feito o estudo de tráfego em primeiro lugar e daí constatar se é ou não recomendável destinar o lote a centro comercial e com aquela taxa de construção. Mas que sabem os leigos? Leigo é quem não tem conhecimentos especializados em determinada área, não é mesmo? Todavia, o leigo em gestão urbana poderá verificar facilmente que o preço dos imóveis subirá, para cobrir os custos, incluindo multas por atraso na entrega do imóvel, às vezes graças à morosidade na fiscalização para o habite-se ou a exigências que implicam em reformas e demolições da obra pronta e construída rigorosamente de acordo com o projeto aprovado. No fim das contas, o consumidor final pagará por tudo, como sempre. São mais algumas taxas virtuais ocultas que se deve acrescentar aos acachapantes impostos nórdicos recolhidos neste país de serviços subsaarianos.
Chegamos ao ponto em que, por mais espantoso que seja, a maioria dos profissionais submetidos a essa via crucis, desagradável até ao ser descrita e lida, agirá cordatamente, ainda que a situação os revolte interiormente, pois há ainda um sentimento de igualdade, isonomia. Aqui há um ingrediente que o exemplo do caos aéreo não abarca. O empresário está tranquilo quando acredita que as leis às quais se submete são igualmente aplicadas a todos seus concorrentes, grandes ou pequenos. Os "jogadores" da construção civil não estão submetidos às mesmas regras, alguns aprovam seus projetos sem um item que onera os de outros, vendem mais rapidamente seus produtos, licenciados primeiro, com preços melhores.
E quando os fura-filas entram nos aviões com líquidos inflamáveis e canivetes? Quando construções recém aprovadas representam risco para a população, ferem o tombamento, são uma afronta ao bom senso? Fui a um show de um cantor inglês, aquele que aprecia óculos, em um estabelecimento servido por uma ruela que não comporta os milhares de carros que a infestaram, e as ruelas adjacentes, e tornaram inviável o funcionamento de dezenas de restaurantes da região. As escadas de emergência não estavam devidamente iluminadas e não possuíam sequer corrimão, seu piso não havia sido desenformado, não havia senão banheiros químicos, sem iluminação, em frente a cujas portas formavam-se filas quilométricas, cavaletes improvisados atados toscamente com arame faziam as vezes de guarda-corpo no camarote, que não tinha rotas de fuga dimensionadas de acordo com a população (55 centímetros para cada 70 pessoas). Alguns chuveiros automáticos estavam incompletos, exibindo o interior do encanamento, o que evidencia que a ele não estavam ligadas as centenas de milhares de litros d'água sob pressão obrigatórias. Havia excesso de poeira de obra, fiações expostas no piso, precariamente coladas com fitas adesivas. O prédio abriu minutos antes do show, contrariando pedidos veementes do Ministério Público, mediante um alvará eventual expedido às pressas e análise feita também a toque de caixa pela Defesa Civil algumas horas antes da abertura dos portões. Considerou-se o show como um evento no gramado da Esplanada dos Ministérios; um show para milhares de pessoas em uma obra inacabada. Ora, o risco que corremos em um evento como esse independe do teor do alvará emitido pelos bombeiros e Defesa Civil, se definitivo, provisório ou eventual. A tragédia em Santa Maria, no Rio Grande do Sul, pouco mais de um mês antes do show, não foi alerta suficiente para que se aumentasse o rigor para com sua segurança.